segunda-feira, 5 de abril de 2010

A caixa aberta.

As escadas pintadas de vermelhão e o velho barraco de madeira cuidadosamente pincelado com azul figuram entre as maiores lembranças da minha infância de moleque barrigudo. Não sei se me recordo dessa época por influência de uma foto já amarelecida pelo tempo_ em que apareço de shorts na cor grená empunhando um sabre do meu tio que foi cadete em Barro Branco _ ou pela absurda capacidade de retenção desta minha prodigiosa memória. O fato é que, pela primeira vez, tenho coragem de perder meu tempo falando sobre isso. Acho que é, de fato, a minha grande recordação e, simultaneamente, a primeira e a última vez em que me dei conta de que era gente. Um pingo, mas inegavelmente gente.Ao leitor, digo “calma”, pois não embarcarei em uma espécie de “lira dos vinte anos”, até porque acho Álvares de Azevedo um chato de galochas que não tinha mais o que fazer. Que me perdoem os acadêmicos, os poetas bissextos e todo mundo que se mete à besta de escrever pelo meu comportamento belicoso de cronista temporão, mas é meu dever alertá-los de que não dou a mínima pra vocês. Falarei sobre o que me rodeia e se não lhes interessar, o problema é de vocês.Lembro-me do dia em que tomei um daqueles tombos de bicicleta que ficam para sempre na lembrança e na pele. Não poderia ser de outra forma, afinal, trinquei um dente da frente e até hoje me culpo por um dia ter sido criança. Hoje, ao me ver com certo distanciamento, posso afirmar sem o menor medo que fui o único responsável por aquela queda, que mais se pareceu com uma aterrissagem mal-sucedida de um avião sem trem de pouso e com pista molhada. Foi um alvoroço danado: pessoas correram de lá pra cá em meu auxílio, dona Zezé, aquela que supostamente dera um osso de galinha à minha cadela de estimação e não satisfeita com a grande merda feita, presenteara a minha querida pulguenta com uma passagem só de ida para a terra das patas juntas, largou o que estava fazendo pra me acudir. Por isso, merece um desconto. Ainda por cima, fui obrigado a presenciar meus pais se culparem mutuamente pela falta de responsabilidade um do outro. Eu até que gostava da negligência compulsória dos dois quando guri. Era mais fácil ser livre pra aprontar naquela época, já que os dois davam duro, cada um em sua respectiva função e não tinham de fato muito tempo para ficarem de olho aberto em mim.Como buscasse remédio de vida, minha família se mudara para um prédio em frente ao Parque Moscoso, o que havia de mais bonito e moderno em termos de casas encaixotadas e sobrepostas da época. Engraçado, só agora me dou conta de algo para o qual não havia atentado até então: quando guri achava que o velho Moscoso era o maior parque do mundo. Eu devia ter entre seis e sete anos. Com essa mudança geográfica, morria o moleque de pernas ruças e poeirentas e em seu lugar, surgia o menino_ colecionador de playmobil e figurinhas do álbum “Selos de todo o Mundo”_ que um dia iria escrever suas idiossincrasias em uma tela que brilha e serve como simulacro de máquina de datilografar. Confesso que não sei até hoje quem é esse outro garoto, pois ele raramente aparece para mim e há tempos anda sumido.Até pouco tempo atrás eu acompanhei as suas peripécias. Soube que se mudou para o que é hoje o maior bairro de Vitória e lá, aos oito anos, conheceu aqueles que vieram a ser os seus grandes comparsas de traquinagem e de matinês na extinta boate Zoom. Lá ele cresceu, aprendeu sobre as “coisas do mundo”, como a sua avó paterna e evangélica costumava se referir ao que realmente interessa a um garoto imberbe e pré-púbere (Nem sei se essa palavra existe!), ou seja: meninas, meninas e meninas. É claro que nem sempre ele lograva êxito, no que aproveitava para preencher o tempo ocioso ouvindo os discos de vinil dos Beatles, outra grande paixão sua. Soube também que esse menino tornou-se um homem, conheceu uma pequena, apaixonou-se, sofreu, caiu e por amor se levantou. Dizem por aí que até pai ele é.Aproveito para dizer, menino, caso você esteja me lendo agora, que gostaria de saber mais notícias suas. Sinto falta das nossas conversas, lembra-se? Eu e você na maior cara-de-pau a cantar Nowhere Man de frente para o espelho. Meu Deus, que farra! Sinto às vezes uma vontade irrefreável de sair à sua procura e repetir esses momentos tão nostálgicos e felizes, mas não sei por onde você anda. Por mais que eu procure, não te encontro. Tenho medo de que você talvez tenha se enchido de mim e fugido para nunca mais voltar em direção ao labirinto escuro que se chama Eu.