sábado, 28 de maio de 2011

A longa e sinuosa estrada de um sonho.

Como é estranho e maravilhoso estar enganado de vez em quando, não é mesmo? Poder abandonar, mesmo que momentaneamente a segurança das certezas e aventurar-se rumo ao desconhecido, sem saber o que encontrar, mas com a sensação de que este encontro modificará por completo a sua vida... Algo indescritível, que ainda não foi medido, pesado, talvez até por medo de que um olhar mais atento e desarmado implique na revisão honesta de uma crença até então inabalável, mas que não tem jeito, fatalmente será jogado por terra...

Antes que os poucos leitores que perdem seu tempo lendo esse arremedo de crônica pensem que o cronista que vos fala ficou de coração mole e assumiu um ar solene, aviso que é bem por aí mesmo, e não me faltam motivos pra isso. Afinal, eu vi, ouvi e senti toda energia de estar no mesmo espaço de um Beatle vivo. E pra quem me conhece, sabe o quanto isso é sério pra mim.

Pois é. Eu fui ao Rio de Janeiro e, a despeito de toda a falta de estrutura da cidade maravilhosa em receber a horda de filhos da beatlemania, devo dizer que ainda assim, a casa do Cristo Redentor me surpreendeu. Em primeiro lugar, é meu dever pedir desculpas ao lugar que tão bem me acolheu. As ruas, os taxis, as senhorinhas de cabelos lilases impregnadas de alfazema, com seus brincos e colares de pérola, fizeram -me enxergar bem mais além dos quase trezentos corpos de seres humanos largados aos porcos, na famigerada invasão de um dos complexos residenciais mais violentos do país. O Rio, meus caros, é bem maior que isso. Maior e mais bonito.

Começo a minha odisséia ao desembarcar no Galeão. Quem o conhece sabe que ele fica bem distante do centro da cidade. Por aí, já seria de esperar que o senso comum gritasse mais alto e que a fama de aproveitador de alguns cariocas “espertos” ganhasse corpo. Ledo engano! Enquanto esperava por mais um fã ensandecido que ainda voava os céus da baía da Guanabara, resolvi conhecer gente. Deste fã eu falarei mais adiante. Por ora, atenho-me àquela figura de taxista que tão bem me atendeu. Um autêntico brasileiro, daqueles que trabalha, paga as contas quando pode e surpresa! , honesto.

Perguntado sobre quanto me cobraria pela corrida, respondeu que não queria meu dinheiro, apenas o dele, coitado. Seu nome é Ricardo e fez por merecer ter o seu nome neste relato mambembe. Graças a ele namorei as vias urbanas que só conhecia das novelas, flertei com as placas de sinalização e me encantei ao menos umas três vezes com a vida, que teima em dar as caras no cartão-postal do Brasil.

Já devidamente instalado na casa de um sujeito bonachão e de boa paz (Feijão, meu amigo, não tenho como lhe agradecer!) seguimos à risca o manual da boa convivência entre cariocas: bebemos feito irlandeses. À noite, rumamos para a Lapa, coração da boemia e não por acaso, o ponto de encontro marcado de milhares de seguidores da religião Fab Four. Confesso que há tempos não era tomado por aquele sentimento de comunhão e êxtase, típicos de quem sabe estar a poucas horas de realizar o sonho de uma vida. Fui então invadido pela paz.

Como bom curioso, procurei me informar sobre um local de diversão verdadeiramente carioca, não aquelas atrações feitas para turistas endinheirados, o que definitivamente não era meu caso. Dei de cara com um típico hippie, que me indicou um samba de raiz, com uma cerveja tão gelada quanto possível, e a um preço ridículo, de tão barata. Foi bom, assim consegui abstrair a minha atenção com outra coisa que não o show do dia seguinte.

Por conta da bebedeira, quase não me levantei para o grande dia. Passei mal como há muito tempo não passava. Uma ressaca guerra que catapultou o tampão de minha cabeça à estratosfera quase estraga tudo. Sob o efeito da marvada, cheguei ao cúmulo de dizer que não iria. Graças ao fã do qual falei quatro parágrafos acima (Valeu elegante!) consegui juntar as forças, levantei-me resoluto e me dirigi ao local do show.

Eu poderia aqui desfiar um rosário para descrever a vergonha que nos aguarda para a copa de 2014, mas isso seria tão pequeno diante do que estaria por vir que dei de ombros à miséria dos trens do subúrbio. Tudo me encantava; as pichações, o ninho de fios elétricos que margeia a linha férrea, o trem que carrega tantos brasileiros dentro e fora dele e que mais parece um vagão de carga, repleto de judeus rumo ao forno, e toda pobreza no entorno. Liguei o “foda-se” e fui. Ao descer do trem em Engenho de Dentro (bota dentro nisso!) e escorregar pela rampa que dava acesso ao show, ouvi uma voz familiar.

Se pudesse exemplificar o que senti por dentro ao ouvir aquela voz, seria o equivalente ao tranco que um carro dá quando tentamos dar a partida em quarta marcha. Minha garganta virou o reduto de uma bola de sinuca, a voz embargou, os olhinhos de criança em manhã de natal boiaram em lágrimas e quase enlouqueci. Era o cara. Não teve como não me lembrar daquelas imagens de fãs surtadas dos anos sessenta, chorando como se estivessem diante de Deus, e que tanto condenei e fiz troça. No fim, acabei por fazer o mesmo.

E daí por diante, não parei mais. Foram longas seis horas de espera, e a cabeça não parava de doer. Talvez pela ressaca da noite anterior, talvez pela ansiedade, não sei precisar. Aos poucos, um mar de gente se formou, todos na mesma sintonia, com o sorriso patenteado que só quem esteve lá consegue compreender. Uma observação: Nenhum incidente, grosseria, empurra-empurra. Que platéia educada. Pensei comigo: eles tiveram pai e mãe.

Quando Sir Paul MacCartney entrou minúsculo naquele palco de proporções faraônicas e acenou para a multidão, pensei estar diante de um sonho do qual não queria acordar. Por um momento, quase tive raiva de John Lennon e sua infame declaração de que “o sonho acabou” e me pus a pensar no que ele diria se pudesse ver toda aquela devoção e entusiasmo. Acho que de certa forma, ele viu. “Here Today”, uma homenagem de Paul ao eterno parceiro, deve tê-lo corado de vergonha onde quer que ele esteja, aposto. Ainda mais no trecho da música em que diz: “O que você diria se me visse agora cantando essa música pra você? Talvez dissesse que somos de mundos diferentes, mas ainda assim eu sinto a sua falta.” Ponto para o Paul!

Macca esbanjou, aos sessenta e oito anos, toda a vitalidade, paixão e intensidade que me fez, aos oito anos, pedir de natal meu primeiro disco, o clássico “HELP”. Aos primeiros acordes de “Hello Goodbye”, quem quase pediu socorro fui eu, ainda sem acreditar no que via e ouvia. A sequência foi ainda mais arrebatadora: “Jet”, “Drive my Car”, “Sing the Changes” e muitas outras que, em três horas de culto, marcaram igualmente – talvez com um pouco mais de entusiasmo em “Hey Jude” e “Helter Skelter” - a vida deste fã abobalhado que vos fala.

E finalmente, o Pout- Pourri. Foi aí que me dei conta de que aquelas notas representavam o clímax de uma noite que ficaria guardada na memória para sempre, a minha e a de meu computador. “Sgt. Peppers Reprise” e “The end” foram executadas pelo Sr. MacCartney num tom que eu realmente considero agora como sendo de despedida. Na saída, totalmente em estado narcoléptico, já sem dor de cabeça nenhuma e ainda com cara de quem não acreditava no que havia visto, concluí que poderia morrer tranquilo.

Toda aquela magia me fez perceber que eu deveria engolir toda aquela conversa sobre quem era o melhor do Beatles e coisas que tais. Eu teria pela frente uma tarefa muitíssimo grata e fácil de cumprir. Não vi John Lennon em ação, muito menos George Harrison. Do Ringo, coitado, eu nem falo (Não é mesmo, seu Edu?). Eu sei muito bem o que vi. E tenho plena convicção: ele ainda é Sir Paul MacCartney, o penúltimo dos moicanos, a penúltima cabeça do monstro, uma lenda, um Beatle, o melhor dos quatro. É, amigos, eu tive que engolir esse sapo. E engoli feliz.